O sistema financeiro brasileiro evoluiu em sua função de financiamento das empresas nos últimos anos na esteira da evolução do mercado de capitais, da revisão do papel do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e da implementação da agenda de inovação regulatória do Banco Central (BC). Em setembro de 2022, 79% do saldo total de dívida das companhias estavam alocados em operações de dívida corporativa e crédito com recursos livres, ante 61% no final de 2016.
As conclusões são do estudo “Mercado de capitais, o ‘novo BNDES’ e inovações regulatórias do BC definem o novo padrão de financiamento das empresas brasileiras”, elaborado pelo Centro de Estudos de Mercado de Capitais da Fipe (Cemec-Fipe) e antecipado ao Valor.
Em um momento de troca de governo e dúvidas sobre o papel que será exercido, por exemplo, pelos bancos públicos, o estudo destaca que a continuidade dos avanços institucionais e operacionais verificados nos últimos anos “deve reforçar o desempenho do sistema financeiro em sua função de otimizar a alocação de recursos de poupança financeira, financiar a inovação e melhorar o acesso de pequenas e médias empresas a recursos de financiamento”. Segundo a nota, esses são fatores importantes para o aumento da produtividade e aceleração do crescimento.
Os dados também vão ao encontro do objetivo do BC de aumentar a potência da política monetária - ou seja, a parcela do crédito sensível às taxas de juros do mercado, que por sua vez refletem às movimentações da Selic.
Até 2016, o financiamento de médio e longo prazo das empresas estava concentrado principalmente no BNDES, com o mercado de capitais atingindo parcela pequena do total, observa Carlos Antonio Rocca, coordenador do Cemec-Fipe. O crédito bancário, por sua vez, tinha dificuldade de atender a demanda da pequena e média empresa, com custos elevados para o segmento. De acordo com o pesquisador, a partir daí, algumas mudanças começaram a alterar esse cenário.
Uma delas diz respeito ao novo posicionamento do banco de fomento. De acordo com o estudo, após 2010, a permanência de altas taxas de juros de títulos públicos e o forte crescimento da oferta de crédito do BNDES a taxas subsidiadas atuaram como um fator de inibição para o desenvolvimento do mercado de capitais. Nesse período, 70% dos desembolsos da instituição beneficiaram grandes empresas.
O novo posicionamento do BNDES, a partir de 2016, é caracterizado pela adoção da Taxa de Longo Prazo (TLP), que se aproxima gradualmente das taxas de mercado e substitui a TJLP. Em paralelo, foram definidas novas prioridades: crédito a pequenas e médias companhias e estruturação e promoção do financiamento de projetos de infraestrutura e de inovação. “Com essa mudança, junto à queda da taxa de juros, houve um aumento muito forte da participação do mercado de capitais no financiamento das empresas”, diz Rocca.
O documento mostra que, em 12 meses até setembro, os recursos líquidos captados com a emissão de títulos de dívida corporativa e emissões primárias de ações responderam por 63% do valor total de captação líquida das empresas brasileiras. Em 2015, essa fatia era de 27%.
Outro dado que indica o crescimento do mercado é o de participação de empresas. O número de companhias com emissões de debêntures dobrou de 820 em 2015 para 1.616 em 2021. No segmento de ações, o número de empresas listadas na B3 aumentou de 326 em meados de 2019 para 376 em setembro de 2022.
A nota também destaca a forte mudança de composição das origens do funding de médio e longo prazo no mercado doméstico. Em 12 meses até setembro, os recursos captados no mercado de capitais por meio de ações e títulos de dívida com essa finalidade responderam por 75% do total, sendo que, em 2014, a fatia foi de 34%. O documento destaca ainda que a atuação dos fundos de venture capital e private equity tem cumprido “importante papel no financiamento de empresas nascentes com alto conteúdo tecnológico”.
Apesar dos avanços, o mercado de capitais ainda enfrenta limitações no financiamento de médio e longo prazo para empresas de menor porte. Na avaliação de Rocca, esse cenário reforça a importância da atuação do BNDES nesse nicho. Ele explica que, embora possam ser adotadas medidas para aumentar o acesso de pequenos e médios negócios ao mercado, fica claro que o banco público segue tendo um papel muito importante nesses casos.
O estudo destaca a importância da agenda de inovação que vem sendo conduzida pelo BC no aumento da eficiência da oferta de crédito bancário. “Essas inovações regulatórias estão produzindo impactos muito fortes, especialmente em favor do financiamento da pequena e média empresa, na medida em que resolvem problemas de assimetria de informações, melhoram a execução de garantias e aumentam a concorrência”, afirma Rocca.
Entre as principais medidas tomadas pelo regulador, o pesquisador cita o cadastro positivo; a duplicata eletrônica; o registro centralizado de recebíveis em geral e o open finance, além do incentivo à entrada de fintechs e demais novas instituições no sistema financeiro.
Embora muitas dessas inovações ainda estejam em implementação, já existem indicativos de impactos positivos sobre a economia, observa o documento. A participação de bancos médios, bancos digitais, fintechs e cooperativas de crédito no saldo de crédito de pessoas jurídicas, por exemplo, praticamente dobrou, de 17,9% em setembro de 2016 para 34,6% em setembro de 2022, com redução do peso dos seis maiores bancos de 82,1% para 65,4%.
A direção dessa evolução recente observada no modelo de financiamento de empresas está muito bem ajustada e é importante seguir neste caminho, diz Rocca. Ele explica que não vê grandes riscos relacionados a um novo reposicionamento no BNDES. Isso porque o cenário restritivo para as contas públicas não permitiria um aumento relevante nos desembolsos. “O risco de isso é acontecer é muito baixo. Não tem dinheiro.”
André Wakimoto, sócio do Cepeda Advogados, acredita que, nos próximos anos, é preciso amadurecer mecanismos que devem seguir aumentando a competição, como a duplicata eletrônica e os sistemas de registros de garantias.
Especificamente em relação ao mercado de capitais, ele destaca a importância dos fundos de investimento em direitos creditórios (FIDCs) como fonte de crédito, especialmente para pequenas e médias empresas. Wakimoto observa que, com o avanço tecnológico, os FIDCs têm cada vez mais conseguido fazer concessões rápidas e eficientes. “Os volumes vêm crescendo.”
Professora do Núcleo de Estudos em Mercados Financeiro e de Capitais da FGV Direito SP, Viviane Muller Prado afirma que o desenvolvimento futuro do mercado de capitais depende primeiramente da manutenção da credibilidade. “É fundamental para garantir um mercado robusto no longo prazo”, afirma.
Segundo ela, é preciso continuar investindo em tecnologia para reduzir custos e garantir maior acesso às empresas, e manter um equilíbrio adequado entre critérios de acesso ao mercado e preocupação com a segurança do investidor.
Prado lembra também que a agenda regulatória da Comissão de Valores Mobiliários está avançando, com medidas como as novas regras para ofertas públicas e fundos de investimentos, além do próprio “sandbox” regulatório. Para a pesquisadora, os impactos dessas mudanças precisarão ser avaliados nos próximos anos.